segunda-feira, 18 de setembro de 2017

Introdução - O Mar Estava Agitado

O mar estava agitado. A pequena embarcação se afastava com dificuldade, buscando alcançar o navio que esperava para partir. Com as vestes ensopadas e água até a cintura, João1 e os outros Cristãos tentavam atingir a praia, mas eram jogados, pelas fortes ondas da arrebentação, exatamente onde acabavam de ser deixados. 

Cefas - uma senhora Cristã, exilada junto com os demais do grupo - caiu e, na tentativa de se levantar, chorava desesperada:

- O que será de nós agora? Como sairemos deste lugar? Vamos morrer aqui!


Paciente e amoroso, João procurava acalmá-la:


- Tenha fé, minha irmã, Deus nunca nos desampara. Ele sempre cuida de todos.


E enquanto a ajudava a se erguer, prosseguiu:


- Não desanime. Por mais difícil que seja nossa situação, vamos confiar no Mestre.


Um pouco mais confortada, a mulher assentiu com a cabeça e enxugou as lágrimas misturadas à água do mar. Explicou a razão de sua angústia:


- Não temo por mim, apóstolo João, e sim por meus filhos, que ficaram em Efeso. E por eles que me angustio. Estou pronta a dar a vida pelo Senhor, se ele assim o desejar, mas e meus filhos?


Como é difícil para uma mãe ver os filhos ameaçados...

- Eu posso imaginar, Cefas, posso mesmo. No entanto, Jesus está no comando de nossas vidas, não está?


Cefas o olhava calada e, ao chegarem finalmente à praia, exaustos, ele aconselhou:


- Agora descanse. Precisamos recuperar as forças.


Aqueles eram mais alguns dos muitos Cristãos exilados por ordem do imperador romano Domiciano. Os componentes do pequeno grupo estenderam-se na areia quente e fina, enquanto tentavam recompor as forças e os corações, abalados pela longa e difícil jornada.


Não obstante a solicitude com que atendia e se preocupava com todos, João parecia cansado. 


Olhou ao redor, notando a beleza do cenário: 

Patmos era uma ilha esplendorosa, localizada no leste do mar Egeu. Acostumado aos encantadores cenários já vistos quando saía para a pesca, e depois pelas viagens que empreendera para difundir o Evangelho de Jesus, ele estava embevecido diante da pequena ilha grega. Já ouvira muitos falarem daquele lindo lugar, porém nunca estivera ali antes. Acomodou-se ao lado dos demais e ficou a contemplar a bela paisagem. 

A brisa perfumada soprava suavemente. O sol se punha devagar, deixando no horizonte um rastro de tons avermelhados e intensos. A vegetação da ilha parecia acalentar o entardecer e recebê-lo com todo o prazer, pois o aroma exalado pelas plantas era doce e agradável.

Não demoraria a anoitecer. Ebenezer tocou o ombro de João e sugeriu:


- Não seria melhor procurarmos abrigo para passarmos a noite? Será que conseguiremos encontrar ainda hoje outros cristãos, também presos na ilha?


- Não tenho a menor idéia de onde possam estar...


- A ilha é pequena, João, e não creio que estejam muito longe da praia. Seria melhor que nos colocássemos logo a caminho.


Ao observar o olhar de João, que focalizava o grupo, Ebenezer aconselhou:


- Embora estejamos todos cansados, não podemos passar a noite aqui. Temos de procurar abrigo.
João sorriu ao admitir:


- Seu bom senso é inegável.


E dirigindo-se ao grupo, pediu:


- Vamos, irmãos, precisamos de um abrigo. Sei que estão todos esgotados, mas não podemos demorar mais.


- Também parece cansado, apóstolo. João abriu sincero sorriso e respondeu:


- E estou mesmo! A idade chegou de vez para mim, minha irmã...


Entregando-se a enorme esforço, puseram-se a caminho, em busca de outros que já estivessem na ilha. Caminharam cerca de meia hora e avistaram algumas casinhas improvisadas, feitas de madeira e cobertas com vegetação. Antes que alcançassem o minúsculo vilarejo, alguns moradores correram ao encontro do grupo. Um dos homens perguntou, ainda a distância:


- São cristãos?


Foi João quem respondeu:


- Somos, viemos de Éfeso.


Um dos que vinham mais atrás gritou:


- João! Apóstolo João? É você mesmo?


Quando reconheceu o companheiro de longos anos, com quem fizera muitas viagens tendo por objetivo disseminar o Evangelho, João exultou:
- Ananias, é você?


Ao se encontrarem, trocaram apertado e carinhoso abraço. Emocionado, o mais jovem disse, enxugando as lágrimas:


- Não pouparam nem a você, João!


- Ora essa, e por que poupariam? 


- Já está com idade avançada! Eles deveriam levar isso em conta. Além do mais, você só faz o bem a todos...

João sorriu e fitou o outro nos olhos:


- Você esquece que não pouparam o melhor de nós todos, Ananias? Aquele que só fez o bem em toda a sua vida? Quem pode exigir ser tolerado ou aceito depois do tratamento que teve o Mestre dos Mestres? Não, não podemos nos iludir jamais. 


Nossa luta é difícil. Jesus já nos ensinou que o caminho para aqueles que desejam segui-lo é estreito.

Fez-se longo silêncio, e Ananias convidou:


- Vamos à minha casa. Mesmo pequena e improvisada, todos nos arranjaremos por lá.


Depois de conversarem muito e trocarem informações sobre o dia-a-dia na ilha e o que acontecia no continente, com notícias de amigos e parentes de muitos daqueles que ali estavam há mais tempo, Raquel, a irmã de Ananias, aproximou-se e sugeriu:


- Devem estar com fome. Vou servir o jantar. Embora bastante frugal, vai alimentar a todos.


Depois da leve refeição, sentaram-se à volta de João e alguns pediram:


- João, conte-nos uma história sobre Jesus. Temos ouvido muitas, mas sei que você deve saber de outras que ainda não conhecemos.


O rosto de João iluminou-se, refletindo suave luminosidade que imediatamente envolveu a todos. O cansaço que sentia desapareceu, ele ajeitou-se no assento que ocupava e disse sorrindo:


- E sempre uma grande alegria poder relembrar as experiências preciosas que tivemos ao lado de Jesus de Nazaré.


E pôs-se a narrar episódios que vivenciara como discípulo de Jesus. Ficaram acordados até muito tarde, relembrando as doces experiências.


No plano espiritual, em torno do pequeno agrupamento, brilhava intensa luz. Se os olhos materiais o permitissem, eles se surpreenderiam ao observar a numerosa companhia espiritual com que contavam naquela noite. Um grupo bem maior de espíritos envolvia aqueles que se reuniam na Terra, e com eles apreciava as histórias sobre o enviado de Deus. Entre seus integrantes estava Ernesto, outrora exilado de Capela. Só muito mais tarde, João disse:


- Bem, agora gostaria de descansar.


Ananias concordou com a cabeça e o ajudou a se levantar, enquanto dizia:


- Ficaria aqui a noite toda ouvindo você.


Ao colocar-se de pé, João bateu levemente nos ombros do mais novo e disse:


- Teremos muitas ocasiões para conversar, não é mesmo?


- Acha que ainda ficaremos muito por aqui? 


- Quem sabe? De toda forma, vamos aproveitar bem nosso tempo. Tenho uma porção de histórias sobre Jesus para compartilhar.

Depois de acomodar a todos, distribuindo-os pelos espaços disponíveis nas pequenas casas, Ananias voltou, sentou-se e, sorvendo um copo de água fresca, em um suspiro desabafou com Raquel:


- Não sei se fico triste ou feliz com a chegada de João. A irmã afirmou:


- Quanto a mim, estou aliviada por tê-lo conosco. 


Já estava começando a perder as esperanças...

No dia seguinte, mal os primeiros raios de sol surgiram no horizonte, João já se levantara e, silencioso, saíra da pequena cabana que os abrigava. Caminhou devagar em direção ao mar e em algum tempo avistou a praia. Admirou a beleza do alvorecer, com os raios cada vez mais fortes do astro-rei rasgando o céu até dominar o espaço. O dia amanhecia belo e cheio de energia. 


João olhou ao redor e notou uma pedra bem desenhada que poderia servir de banco. Sentou-se, ainda contemplando o mar e o céu. Depois, indagou em pensamento:

- Deus, meu Pai, Mestre Jesus, o que desejam de mim? Estou aqui, isolado de tudo e de todos. 


Como prosseguir com a tarefa de levar o Evangelho ao povo, de difundir seus ensinamentos, se permitiram que para cá eu viesse? É chegado o momento da minha passagem para o mundo espiritual?

Ernesto, espírito que fora seu pai em existência longínqua, em Capela, afagou-lhe os cabelos e sussurrou-lhe ao ouvido: "Não, querido Henrique, não é o momento da sua transição. Serene seu coração e espere tranqüilo. Ainda tem muito trabalho a fazer. Contamos com você, com sua força física e sua fé em Jesus".


Registrando no coração aquelas palavras, João sorriu e falou baixinho:


-Estou aqui, Senhor, pronto para fazer tudo o que de mim desejar. Sou seu servo.


Ele se calou. Mais uma vez Ernesto afagou-lhe os cabelos e beijou-lhe a fronte envelhecida. Aquela altura João já somava 85 anos de vida, e ainda mantinha vigor físico que impressionava a todos.


O apóstolo continuou a meditar e orar por mais algum tempo. Foi interrompido pela voz amiga de Ananias:


- Sabia que o encontraria aqui.


João sorriu para o companheiro, que logo se acomodou ao seu lado e comentou:


- É lindo ver o nascer do sol deste local. Muitas vezes tenho vindo para apreciar a beleza e orar... 


- É um lugar ideal para a prece. O silêncio ainda domina a paisagem e tudo vai despertando aos poucos, à medida que oramos. E como se nos integrássemos a toda a natureza, louvando a Deus pelo dom da vida.

Ananias ficou calado. Lágrimas brotaram em seus olhos e lhe desceram pela face. Limpou o rosto, porém elas teimavam em cair. João tocou-lhe o ombro fraternalmente e indagou:


- O que foi, Ananias? O que o entristece tanto, meu irmão?


- Eu não entendo bem o que acontece, João. Por que estamos aqui, separados de nossos parentes e amigos? Estamos tentando fazer o bem, conforme Jesus nos ensinou, e somente isso. Não infringimos nenhuma lei, e tantos Cristãos já foram sacrificados, tantos... Por que isso está ocorrendo, João? Você compreende?


- Meu caro Ananias, não se deixe abater. A tristeza pode vir, é normal, mas não permitamos que ela tome conta de nós. Lutemos contra a tentação do abatimento e do sentimento negativo de derrota. Lembre-se de que somos mais do que vencedores por aquele que nos amou até a morte.


Depois de breve silêncio, Ananias continuou, enxugando as lágrimas:


- Eu sei, João, e por isso me entristeço. Não consigo ter fé igual à que vejo em você e em tantos outros cristãos. Apesar de amar o Mestre e confiar nele, às vezes fico realmente cansado de lutar tanto. Por que tudo isso acontece?


- As resistências e oposições que levaram Jesus ao madeiro são as mesmas que nos perseguem e querem nos calar. Assim como acham que emudeceram Jesus, matando-o, pretendem matar a todos nós, para silenciar a própria consciência que lhes desperta sutilmente na alma. Não querem enxergar, pois isso os obrigaria a mudar, a abrir mão de seus interesses, de seu orgulho, das ilusões sobre si mesmos e sobre o mundo que acalentam no íntimo. Jesus os incomodou, Ananias, e nós, igualmente, muito os incomodamos.


Ananias ficou novamente pensativo. João prosseguiu:


- Apesar de tudo, veja que eles não conseguem calar os cristãos. Alguns realmente foram sacrificados, mas muitos outros estão abraçando a causa do Evangelho.


- E dá para crer que logo seremos aceitos e finalmente poderemos viver nossas vidas, tentando aplicar e ensinar o que Jesus nos deixou? Isso só fará bem às pessoas... Como é possível que não percebam?


Dessa vez foi João que nada disse. Ananias suspirou fundo, em curto intervalo, e confessou:


- Estou cansado, João. Foi muito doloroso para mim perder entes queridos da minha família. Você sabe, meu pai e meus irmãos foram mortos por ordem de Domiciano. Minha mulher e meus filhos estão em Efeso, escondidos na casa de amigos. 


Não consigo perdoar totalmente, conforme Jesus nos ensinou. Sinto muita dor no coração, muita saudade...

- Ananias, você sabe que seu pai e seus irmãos não morreram! Estão vivos e a serviço de Jesus, em outra dimensão da vida. Eles estão bem, muito bem!


Subitamente, João parou de falar, fechou os olhos por um instante e em seguida os abriu.


- E estão aqui agora - disse. Ananias arregalou os olhos e perguntou:


- Aqui, conosco? Eles estão aqui?


- Sim. Seu pai pede que você se tranquilize, pois Ester e as crianças passam bem. Estão seguras e bem protegidas.


Ananias, tocado pela energia de amor que emanava do pai e dos irmãos desencarnados, vertia copioso pranto. João prosseguiu:


- Seu pai o envolve em terno abraço, Ananias, e lhe diz que eles partiram porque a hora havia chegado; já tinham cumprido a tarefa que lhes cabia na encarnação. Agora precisam dar seqüência ao trabalho, no plano espiritual, e contam com sua ajuda para realizá-lo. Eles têm permanecido muitas vezes ao seu lado, intuindo-o e orientando-o quanto à forma de colaborar.


Limpando as lágrimas, ele disse:


- Gostaria de poder abraçá-los também. Eu os amo tanto...


- Eles sabem, sentem o seu carinho. Todavia, você os ajudará muito mais confiando na Providência e sabendo que continuam por perto.


Ananias calou-se, tomado pela emoção. Aos poucos se acalmou e, depois de prolongado silêncio, afirmou:


- Estou melhor, e só posso agradecer-lhe por me proporcionar tamanha alegria.


Sem dizer nada, João abraçou carinhosamente o amigo. Então, Ananias convidou:


- Não seria melhor irmos? Você precisa se alimentar. Comeu algo antes de sair?


- Não. Gosto de orar pela manhã, antes de me alimentar.


- Só que agora deve comer.


- Vá indo, Ananias. Eu sigo logo atrás.


- Não, João.Vamos, terá tempo de sobra para voltar aqui quantas vezes quiser; está na hora de cuidar bem de seu corpo, ainda vai precisar muito dele...


João ergueu-se e concordou:


- Tem razão; Ananias; vamos indo.


Enquanto caminhavam em silêncio pela trilha que levava da praia até a cabana, João imaginava quantos cristãos deveriam estar sentindo angústia idêntica à que vira em Ananias. Por certo havia os que compreendiam o sentido do sofrimento que lhes era imposto, ao passo que muitos provavelmente se questionavam sobre os motivos de tanta resistência, de tamanha oposição enfrentada. À medida que pensava, uma idéia lhe surgia, clara e nítida, no fundo da mente: escrever aos Cristãos, esclarecendo e comentando a vitória do Cristianismo no mundo.


Em pensamento indagou: "Quando começaremos?". E a resposta lhe soou na mente: "Em breve".


Quase um ano se passou. Outros grupos de cristãos chegaram à ilha, contando os horrores que muitos estavam enfrentando por causa dos governadores romanos. Por toda a parte era árdua a luta dos cristãos. Certa noite, depois de ouvir alguns deles narrarem o que se passava em diversos pontos da Palestina e de outras regiões, João se recolheu com o coração dolorido. Sabia que o combate seria duro, mas sempre que constatava a aridez do coração humano, e quanto de mal um homem era capaz de fazer ao seu semelhante, ficava triste. Ao acomodar-se na cama, naquela noite, ele não conseguia dormir. 


Virava-se de um lado para o outro, na tentativa inútil de conciliar o sono. Sentou-se, e escutou mentalmente, com nitidez uma voz: "Durma, João, aquiete-se e durma. Hoje começará a receber as informações que deverá escrever". Ainda sentado, ia questionar, quando a voz pediu com suavidade: 

"Deite-se. Logo você dormirá e então verá, diante de seus olhos, o que deverá escrever".

Acostumado a obedecer às orientações espirituais que recebia, João deitou-se outra vez, procurando pensar apenas no rosto amigo e meigo de Jesus, que trazia na memória com todos os detalhes. 


Pouco a pouco a lembrança o acalmou e ele adormeceu. Seu corpo espiritual foi então desprendido do corpo físico e Ernesto, que o aguardava, perguntou:

- Então, Henrique, está pronto para traduzir o que ainda há por vir para os cristãos, as lutas e também as vitórias?


Abraçando o querido amigo, João respondeu:


- Estou pronto para tentar.


- Vamos, está tudo preparado. Você verá o desenrolar dos fatos futuros lá na colônia, e, ao regressar, começará a traduzir para nossos irmãos encarnados aquilo a que tiver assistido.
João calou-se, pensativo.


- O que foi, está preocupado? 


- Ernesto indagou.

- Nunca fui muito bom para escrever, você sabe, não é? Tenho lá minhas dificuldades.


- Não se preocupe. Você terá muita ajuda. 


Preparavam-se para partir quando João perguntou, com um sorriso:

- Tem visto Elvira? 


- Não, desde que ela regressou para Capela, mas sei que está sempre pensando em nós. Sinto seus pensamentos envolvendo minha mente.

- E como está você, Ernesto?


- Fortalecendo-me com o seu exemplo. João sorriu e abraçou-o.


- Podemos ir agora - falou.


Partiram, Logo alcançaram a colônia, próxima ao orbe da Terra, e lá João pôde visualizar, numa tela imensa, muitos fatos que ao longo do tempo se sucederiam no planeta. Mais tarde, ao retornar, ele pediu:


- Por favor, Ernesto, precisarei de ajuda para o que devo realizar. Não sei como colocar na linguagem dos meus contemporâneos aquilo que vi hoje.


- Voltaremos muitas vezes à colônia. Você poderá rever o que para você for motivo de dúvida e conversaremos sobre cada detalhe. Ajudaremos em tudo que estiver ao nosso alcance. Vai dar certo, não se preocupe.


Na manhã seguinte, o sol já ia alto quando João despertou. A cabana estava vazia e ele se sentia atordoado. Sentou-se e meditou um pouco, buscando compreender tudo o que sentia. Então saiu em busca de Ananias e logo encontrou Raquel, que informou:


- Ananias foi pescar. Pediu que ninguém o acordasse e todos tentamos deixar a cabana sem fazer barulho.


- E conseguiram. Agora, preciso de pergaminhos, pena e tinta. Tenho de escrever.


Imediatamente Raquel correu para a cabana e logo surgiu à porta, avisando:


- Está tudo na mesa. Sobre o que o senhor vai escrever? É alguma orientação para nós?


- Para nós e todos os cristãos, Raquel.


- Puxa, que notícia boa! Sorrindo, João explicou:
- Vou tratar de escrever, antes que o que vi em sonho esmaeça em minha mente.


Assim, durante os anos que passou na ilha de Patmos, João ocupou-se em registrar, da melhor forma possível, tudo o que observava no plano espiritual, com relação ao futuro da Terra e dos homens. Embora desejasse ardentemente transmitir mensagens de otimismo e esperança, constatava, dia a dia, que o porvir da humanidade seria marcado por uma longa trajetória de dor, lutas e muito sofrimento, até que o raiar de nova era libertasse, finalmente, a consciência humana.


Naquele cenário de rara beleza, João escreveu as páginas que seriam conhecidas pelas futuras gerações como o Livro do Apocalipse, retratando uma das fases de transformação da Terra, em seu processo evolutivo. 


1 João foi um dos doze apóstolos de Jesus.
Capítulo 1 - Roma

Roma, ano 324 da era Cristã. No salão de audiências ouviam-se os gritos do poderoso general:

- Saia já da minha frente, verme inútil!


Desapareça, suma, ou não sei o que faço com você!

Licínio2, agressivo, empurrou o mensageiro que se mantinha curvado diante dele, fazendo-o cair nos degraus da escadaria próxima. O jovem logo se ergueu e, aterrorizado, saiu rapidamente da sala. 


Sabia do que aquele velho general era capaz.

Constância entrou a tempo de presenciar a cena e, verificando a enorme irritação do marido, indagou:


- Por que maltrata tanto o pobre rapaz? Ele trouxe más notícias? O experiente general do império endereçou olhar furioso à esposa e limitou-se a dizer:


- E seu irmão outra vez.


Aproximando-se do marido e buscando aparentar calma, Constância insistiu.


- E o que foi agora?


- Sei muito bem o que ele planeja, suas intenções...


- O que houve?


Medindo a mulher de alto a baixo, o general disse, enquanto saía apressado do amplo salão:


- Não vai vencer, escreva o que digo... Por Zeus! 


Ele não vai vencer!

Constância fez Licínio estacar na porta ao argumentar:


- Constantino é determinado e ardiloso. Consegue tudo aquilo que deseja.


Ele virou-se para ela e esbravejou, ainda mais contrariado, deixando perceber todo o seu furor contra o opositor:


- Tem conseguido ampliar o território sob seu poder à custa de muito ouro e muitas vidas romanas. Sabe seduzir os generais com seus argumentos e pontos de vista, mas não é perfeito.


Pelos deuses! Quem ele pensa que é? Quer dominar todo o império. Quer tornar-se o único César, poderoso e absoluto!

Constância afirmou, hesitante:


- Provavelmente sim.


- Pois ele não conseguirá! Vou impedi-lo, custe o que custar! A mulher segurou o braço do marido e advertiu:


- Seja cauteloso. Com Constantino, todo o cuidado é pouco. Por favor, veja lá o que planeja. Além do mais, é meu irmão, e não quero que nada lhe aconteça. - Não se iluda, Constância. Ele jamais teria qualquer piedade de você.


A esposa argumentou:


- Está enganado. Constantino é um homem determinado, ambicioso e astuto, mas é justo. Não faria nada que me prejudicasse, a menos que eu o prejudicasse primeiro. Portanto, pense muito bem antes de agir contra ele.


Sem responder, o velho general desapareceu pelo corredor, deixando a esposa a meditar. Respeitava o marido e admirava o irmão; queria bem aos dois, mas temia pelas atitudes sempre intempestivas de Licínio. Sentou-se e, observando pela janela a movimentação dos soldados sob as ordens do marido, ficou a se perguntar o que exatamente estaria acontecendo. Licínio se irritava muito com as atitudes de Constantino; embora antes fossem muito próximos (até mesmo o seu casamento havia sido negociado com o irmão, para estreitar os laços entre eles), agora estavam a ponto de um confronto direto. Depois de muitas lutas e combates, mentiras e traições, assassinatos e disputas cruéis, que não poupavam ninguém e nem mesmo laços familiares dos mais próximos, Constantino havia conquistado toda a região ocidental do império, tornando-se o imperador do Ocidente, e Licínio era então o Augusto do Oriente. Ambos dividiam o poder do imenso território sob a égide da águia.


O olhar de Constância, que parecia perdido, encheu-se de temor. Ela continuava a refletir que haviam sobrado apenas os dois e que seu irmão não dividiria o poder. Pressentia que eles iriam entrar em confronto direto, e não demoraria muito. 


Tirando de sob as roupas, junto ao peito, uma pequena cruz de madeira que trazia pendurada em uma corda fina feita de couro, apertou-a com uma das mãos e pediu, baixinho:

- Ajude-me, Jesus, por favor. Proteja Constantino e também Licínio. Não deixe que minha família seja dizimada por essas disputas estúpidas de poder! Por favor, Nazareno, olhe por mim...


Ainda segurava firme a pequena cruz quando sua serva pessoal entrou, ofegante:


- Minha senhora, precisa vir depressa!


- Calma, Ana. O que foi?


- Venha, senhora, rápido! Uma desgraça está prestes a acontecer! A senhora precisa impedir!


Constância acompanhou Ana pelos corredores do palácio até chegar à porta do gabinete do marido que, aberta, permitia que o escutasse a gritar pela sacada do amplo salão, diretamente aos soldados. 


Enfurecido e enlouquecido, ele gritava:

- Meus leais servidores, moradores da bela e poderosa Bizâncio, obedeçam às minhas ordens. 


Quero que todos os funcionários cristãos deixem seus postos e partam imediatamente. Que não fique um só em meu reino. Todos fora! São traidores, perigosos, eu os quero longe daqui. 

Todos servem a Constantino!

Constância aproximou-se do marido e, segurando-o pelo braço, implorou:


- Acalme-se, por favor! O que está fazendo?


Ele arremessou-a para longe com toda a violência, fazendo-a cair sobre um banco e depois sobre uma mesa mais adiante. A serva ia entrar para socorrer sua senhora, que continuava no chão, ferida, quando Licínio, olhando-a com fúria, gritou:


- Não ouse entrar em meu gabinete, cristã imunda! 


Suma daqui! A ordem é para você também! Suma da minha frente ou acabo com você com minhas próprias mãos! Já! Desapareça!

Em seguida ele voltou para a sacada, e continuou a gritar aos subordinados:


- Até o final do dia quero todos os cristãos bem longe daqui. Todos eles, sejam romanos ou não! 


Não quero um remanescente! Aqueles que não concordarem com minhas ordens, podem partir também. Quero limpar meu reino dessa praga e vai ser hoje mesmo.

Constância permanecia no chão, desacordada e ferida na cabeça. Total-mente cego pelo ódio que sentia por Constantino e por seus freqüentes avanços militares, Licínio escrevia uma ordem expressa para que, em todas as cidades de seu reino, os cristãos fossem banidos imediatamente de qualquer cargo ou função que tivessem em qualquer área relevante. Que se tornassem todos es-cravos! Assim que terminou, saiu da sala com o pergaminho nas mãos e sumiu no corredor, diretamente para o grêmio onde ficavam os seus soldados mais graduados. Levava pessoalmente a ordem.


Ana, que se afastara aturdida, buscou ajuda de outra serva de confiança de Constância, que mantinha em segredo sua opção pelo Cristianismo, e pediu:


- Helena, precisa ajudar a senhora! Ela está ferida.
- O que houve?


- Já escutou a ordem do imperador Licínio?


- Sim, já correu por todo o palácio.


- A nossa senhora tentou intervir e ele a empurrou...


Ana começou a chorar angustiada. Helena trouxe-lhe um pouco de água e pediu:


- Fale, o que houve?


- Eu acho que a matou...


- Não é possível! Ele não seria capaz... - Acho que foi sem querer. Ele estava com muita raiva, jogou-a com força e ela caiu e bateu a cabeça na mesa... Vi que sangrava... Se não está morta, acho que está morrendo...


Pálida, Helena ergueu-se dizendo:


- Precisamos ajudá-la!


- Eu não posso. O imperador me impediu de entrar em seu gabinete e me quer fora do palácio. Se me encontrar de novo por aí, é capaz de me matar...


Precisava ver como ele estava... Parecia fora de si, enlouquecido... Você precisa ajudá-la... Eu não posso fazer nada!

Helena pensou por um instante e, virando-se para Ana, pediu:


- Vá então, Ana, vá antes que ele a encontre. Mas primeiro peça a Juliano para vir até aqui; diga que a mãe está ferida, não fale de suas suspeitas mais graves.


Olhando para o céu, disse:


- Tenho esperança de que ela esteja apenas ferida.


Agora vá. Procure por Juliano e diga que me encontre no gabinete de Licínio. Vamos socorrer Constância.

Antes de sair, ao alcançar a porta, Ana se voltou e disse, em lágrimas:


- Tome cuidado, Helena. Ele está fora de si...


Ana saiu depressa e Helena correu pelos corredores, encontrando amigos e parentes que, com alguns pertences nas mãos, fugiam assustados. Ela seguiu até atingir a parte mais alta do edifício, onde ficava o amplo salão de Licínio. 


Observou que estava vazio e correu até Constância. Havia sangue espalhado sob sua cabeça e Helena constatou que o ferimento era grave. Debruçou-se sobre o peito da outra e escutou-lhe o coração. Ainda batia. Logo, Juliano entrou, à procura das duas:

- Estou aqui.


Ele estava lívido, com as mãos trêmulas e suando frio. Olhou para a mãe e depois para Helena e perguntou, assustado: 


-Ela... está...

- Ela está viva, mas precisamos tirá-la logo daqui e tratá-la. Se perder mais sangue, não sei o que poderá acontecer...


- É claro! Mas o que foi que deu no meu pai dessa vez?


- Não sei, Juliano. Acho melhor você se preocupar com isso depois. Agora precisamos socorrer sua mãe.


- Claro...


Helena rasgou parte de suas vestes e cobriu o ferimento, procurando estancar o sangramento. 


Assim que o curativo improvisado ficou pronto, Juliano carregou a mãe para seu quarto e colocou-a na cama.

- E agora, o que faremos? Helena não titubeou: 


- Vou procurar ajuda. Fique aqui com ela e não deixe ninguém se aproximar antes que eu chegue, está bem?

O rapaz balançou a cabeça afirmativamente.


2 Valério Liciniano Licínio, coimperador romano no período de 308 a 324 d.C.
Capítulo 2 - Juliano Sentou-se

Juliano sentou-se à beira da cama e afagou com ternura o rosto da mãe. 

Seu coração batia descompassado; suas mãos suavam frio e de seus olhos desciam pesadas lágrimas que corriam pela face alva, alcançando, vez por outra, as mãos de Constância. Esta, imóvel, empalidecia mais e mais, e agora já tinha os lábios arroxeados. O rapaz olhava para a porta a todo instante, ansioso para que alguém aparecesse em socorro da mãe. 

Ele a beijou na face e sussurrou, angustiado:

- Por favor, mamãe, agüente! Helena foi buscar ajuda. Não morra, por favor...


Escutou a voz forte e irritada do pai:


- O que está fazendo aqui? Onde está sua mãe? Juliano ergueu-se indignado:


- Não está vendo que ela está aqui, prestes a morrer por sua causa?


Sustentando o olhar arrogante, Licínio, incrédulo, acercou-se da ampla cama que acomodava a esposa. Fitando-a, exclamou:


- Não tive a intenção de machucá-la, mas ela insistia em interferir em minhas ordens!


- Não sente nada por ela, mesmo, não é?


- E quem você pensa que é para questionar meus sentimentos, rapaz? Ainda não sabe nada da vida, das dificuldades e desafios que o mundo nos impõe. Não tem o direito de julgar-me ou discutir meus atos.


- Você machucou a minha mãe, tratou-a com violência, e é só isso que me diz? Vem ainda me censurar...


Juliano interrompeu-se, em pranto. Licínio aproximou-se mais da mulher, auscultou-lhe o coração, ergueu-lhe a cabeça e observou o curativo e o ferimento. Depois, recolocando-a com cuidado na cama, ergueu-se e disse:


- A mim você não puxou, definitivamente. Parece uma mulherzinha choramingando. Vou buscar alguém que a possa ajudar.


Sem esperar pela resposta do rapaz, Licínio saiu decidido. Antes de deixar o cômodo, no entanto, virando-se para o rapaz, disse: 


- Mandarei um dos sacerdotes vir vê-la. Depois partirei com meus melhores homens para terminar o que comecei. 

Quero expulsar definitivamente todos os funcionários cristãos que trabalham em áreas administrativas do meu reino.

- Por que tanto ódio, meu pai?


- Você pensa que sabe alguma coisa sobre esses cristãos, mas não sabe. Eles são como uma praga que se espalha por toda parte e se infiltra em todas as áreas do império. Um sem-número de aristocratas da mais alta casta romana está se juntando a esses seguidores de um mestre nazareno que faz milagres e promete vida eterna... 


Vida eterna... Promete o paraíso...

- Eu realmente não o compreendo, meu pai. Não foram você e meu tio que fizeram promulgar o Édito de Milão, em que determinam que haja tolerância religiosa no império? Você apoiou tio Constantino e fez valer essa lei. Por que fez isso, se não aprecia os Cristãos?


Licínio, de cenho fechado e olhar distante, considerou:


- Eram outros tempos, muito diferentes de agora. 


Constantino ainda tinha algum respeito pelos seus colegas militares, e talvez até mesmo pelos desgra-çados Cristãos. Agora, todos não passam de instrumentos de seus interesses, de bonecos em suas mãos... De coisas, entendeu? Coisas que ele usa conforme seus desejos e caprichos. A cada um ele usa e descarta, como fez comigo. Ou você acha que seu tio vai descansar enquanto não me enfrentar?

Licínio parou por um momento, depois bradou, ainda mais enfurecido:


- E vou derrotá-lo! Ele não me vencerá!


Juliano baixou a cabeça, limpando as lágrimas, e fitou a mãe com terna tristeza. Licínio sumiu esbravejando pelo corredor. Podia-se escutar sua voz ecoando pelo palácio e desaparecendo aos poucos. Logo que Licínio afastou-se, Helena entrou depressa, trazendo consigo um médico romano, que havia pouco se tornara cristão. Já conhecendo a gravidade do problema de Constân-cia, ele não demorou a fazer-lhe novo e cuidadoso curativo, e em seguida fê-la beber um preparado que ele fizera com muitas ervas, para restituir-lhe a força e ajudar seu próprio corpo na restauração do ferimento. Helena o ajudava, observando-o em silêncio. Juliano se afastara um pouco, pois não suportava ver a mãe naquelas condições. Otávio não havia ainda terminado os seus cuidados, quando Gripínio, o sacerdote mais graduado e responsável pelos serviços aos deuses romanos, entrou no quarto em busca da mulher de Licínio. Juliano adiantou-se e informou:


- Otávio já cuidou dela.


- Seu pai ordenou que eu a visse. 


- Pois ele não está aqui agora. Eu, sim, e digo que ela já recebeu os cuidados de que necessitava. Deixe-nos. Meu pai não sabia que eu já mandara vir ajuda, por isso foi procurá-lo.

- Engano seu. Ele foi à minha procura porque confia em mim e sabe que farei o que é o melhor para salvar sua mãe.


- Ela já foi socorrida. Agradeço, mas não necessitamos mais de sua ajuda.


- Pois bem, se algo acontecer a ela, será sua responsabilidade!


- Minha?! Ora essa! Meu pai foi quem quase a matou e você vem me dizer que a responsabilidade será minha?


- Então me deixe vê-la!


Otávio, que terminara o atendimento, interveio:


- Consinta que ele a veja, Juliano. Que mal pode haver? O estado dela é muito grave e toda a ajuda é bem-vinda.


O rapaz afastou-se da cama para que Gripínio se aproximasse. Ele a examinou minuciosamente; depois se ajoelhou e fez alguns gestos, pedindo socorro aos deuses. Em seguida, fitou Otávio, que aguardava em silêncio, e disse a Juliano:


- Ela recebeu cuidados adequados. Agora está nas mãos dos deuses. Vou até o templo preparar um sacrifício especial pela vida dela. Eles haverão de me escutar.


Juliano balançou a cabeça sem dizer nada e Gripínio saiu do quarto. Otávio aproximou-se do rapaz e, tocando-lhe o ombro, disse:


- Como disse antes, o estado dela é bem delicado. 


O que podemos fazer agora é pedir a Deus por ela.

- Será que está sentindo muita dor?


Dessa vez foi Helena quem se aproximou e disse:


- Uma das ervas que Otávio lhe deu tem efeito de atenuar a dor. Dirigindo-se ao médico, ela indagou:


- Não há mais nada que possamos fazer?


- Continue dando o chá de hora em hora. Isso vai ajudá-la. Se seu estado piorar, veremos o que podemos fazer. Por enquanto, temos de aguardar.


Helena se prontificou:


- Se você me permitir, Juliano, vou ficar aqui cuidando dela, dia e noite.


Otávio também se ofereceu:


- Tenho algumas tarefas para terminar, mas depois posso ficar aqui também.


Apertando as mãos de Helena e depois de Otávio, ele concordou:


- Aceito, por certo. O estado de Constância alternou fases de ligeira melhora e de piora acen-tuada nos dias que se seguiram. Ela permanecia inconsciente. Às vezes sussurrava palavras desconexas, quase incompreensíveis, em outras calava completamente. Juliano, dedicado e amoroso, não saía do lado da mãe. Otávio e Hele-na também se revezavam em cuidados e atenção e a jovem, vez por outra, ajoelhada à beira da cama, orava ao Mestre que há pouco conhecera, rogando pela vida daquela mulher aparentemente frágil, mas cheia de força interior. Muitas vezes, ao terminar suas orações, ia devagar até a cabeceira da cama e sussurrava no ouvido de Constância:


- Não nos abandone. Por favor, lute!


Algumas semanas depois, a notícia do ocorrido com a irmã chegou aos ouvidos de Constantino3


Ele permanecia sentado, ocupando o lugar de maior destaque no centro de seus conselheiros, e ouvia a narrativa sobre as últimas ações de Licínio sem esboçar nenhuma reação. Constantino era um general respeitado pelos seus homens e pelos seus súditos. Conquistara cada pedaço do território romano que ora estava sob seu controle com muita astúcia e arguta estratégia, o que o tornara um conquistador querido e respeitado.

Com rosto de forte ossatura, transparecia em seu corpo e sua postura a determinação e a coragem de, destemida e sabiamente, lutar pelas suas aspirações. Constantino parecia incansável e inabalável. Nada tirava dele a calma e a determinação na tomada de decisões e nas ações. 


Ele raramente reagia e, sim, utilizava toda e qualquer informação ou situação em seu favor. 

Quando o mensageiro terminou de narrar o que se passava no império do Oriente, ele parecia distante, mas logo perguntou:

- E como está minha irmã agora?


- Não sabemos exatamente, parece que seu estado é muito grave.


- Está recebendo os cuidados devidos, ou Licínio a abandonou à própria sorte?


- Juliano, seu sobrinho, é quem está tomando conta dela. Constantino calou-se, pensativo. O silêncio era absoluto no salão, quando um soldado surgiu à porta e interrompeu a reunião:


- Senhor, um mensageiro da fronteira chegou apressado e deseja falar-lhe. Diz que é extremamente urgente.


Constantino não respondeu, apenas inclinou a cabeça afirmativamente. O soldado reproduziu o sinal positivo e saiu apressado. Logo retornou com o mensageiro, que aparentava abatimento e cansaço extremo.


- Senhor, trago notícias da fronteira. Más notícias, senhor. Constantino disse, atento: 


- O que houve?

- Os sármatas se preparam para invadir o reino do Ocidente. Já arregimentaram grande número de homens, que não param de chegar. O exército deles está crescendo a cada dia.


O imperador guardou silêncio. Seus generais mais leais e seus conselheiros já o conheciam bem e sabiam que seu silêncio era a maior ameaça contra seus inimigos. Todos esperavam pelo que diria Constantino, sem se manifestarem. Ele se levantou, caminhou até um mapa de seu reino e de suas fronteiras, examinou o desenho com atenção, depois virou para o soldado e perguntou:


- Mostre-me onde exatamente se concentram.


O jovem foi até o desenho colocado sobre uma mesa enorme, observou o mapa com atenção, depois apontou:


- Estão aqui, entre as montanhas...


Constantino observou o lugar exato que o jovem apontara, depois sorriu levemente e sugeriu:


- Descanse e coma um pouco. Parece exausto.


- Agradeço, senhor, mas estou a seu serviço, aguardando suas ordens. Só descansarei depois que o atender, meu senhor.


Tocando-lhe o ombro, Constantino insistiu:


- Descanse, pois tenho planos para seu regresso.


O jovem escutava o imperador com atenção, assim como os demais ouvintes. Constantino aproximou-se do mapa, analisando ainda melhor cada detalhe, depois se virou para o rapaz e disse:


- Amanhã quero que parta bem cedo e vá direto ao meu amigo, Augusto do Oriente, Licínio.


Sem compreender, todos aguardavam o esclarecimento de seu líder, que prosseguiu depois de longa e premeditada pausa:


- Quero que Licínio nos permita atravessar seu território para exterminar-mos os sármatas. Quero que ele me autorize a atravessar suas cidades mais lucrativas, para surpreender os sármatas, pelos flancos, certamente por onde não esperam que ataquemos.


Um de seus generais apenas balbuciou:


- Mas esse é o caminho mais longo... Constantino comentou, com sorriso irônico:


- Pode até ser mais longo, mas iremos conquistando tudo o que estiver em nosso caminho. Ao nos defrontarmos com os sármatas, não somente nosso exército será maior, como meu império estará consolidado. Confie em mim, Galenius, sei o que estou fazendo. Erguendo todo o seu corpo e esticando o braço em sinal de profundo respeito, Galenius saudou o seu imperador:


- Não tenho a menor dúvida disso! Ave César! 


Todos em uníssono repetiram:

-Ave!


Constantino manteve-se sério e em silêncio. No entanto, um observador atento registraria em seu olhar a enorme satisfação que sentia pela destacada posição que ocupava, pela admiração que recebia de seus subordinados e súditos, bem como pela perspectiva cada vez mais próxima de tornar-se o único imperador de Roma.


3 Constantino I, Constantino Magno ou Constantino, o Grande.
Capítulo 3 - A Medida

A medida que os generais e conselheiros deixavam a sala em alvoroçada conversa, Constantino acomodou-se em sua cadeira suntuosa, seu trono. Sentou-se e observou seus homens se afastando; apenas os mais próximos ainda permaneceram com ele. Mentalmente, felicitou-se por estar mais uma vez aproveitando tão bem as circunstâncias em seu favor. Claro que não ficara feliz com a notícia de que a irmã estava doente, mas a agressão de Licínio contra ela era desculpa mais do que suficiente para que seus homens o seguissem em sua condição de Augusto ferido no orgulho familiar. Licínio mais uma vez passava por um brutamontes, e deveria ser contido a todo o custo.

Ele acompanhou a movimentação com o olhar, depois fitou Marco e indagou:


- Está comigo no que pretendo fazer?


- Sim, sem restrições, senhor.


Constantino levantou-se, tocou-lhe o ombro e comentou:


- Meu bom Marco, eu sei que posso contar com você. O outro respondeu sem pensar:


- E como poderia ser diferente? Licínio quase lhe mata a irmã!


Constantino aproveitou e, ainda que demonstrasse fixar apenas Marcos, estudava de canto de olho as mínimas reações de Helenus e Domenico; consciente da admiração e do respeito que ambos dedicavam aos cristãos, arrematou:


- Ele está piorando a cada dia. E esse problema com os cristãos, agora?


Os outros dois permaneciam calados. Marco, Helenus e Domenico eram os três homens de confiança absoluta de Constantino, o que no império romano daquela época era algo quase impossível. Temia-se até a própria sombra. Os três generais que ocupavam a mais alta graduação do exército pretoriano haviam sido transformados em guarda pessoal do imperador do Ocidente e agora acompanhavam-no em tudo, participando de todas as suas decisões. Experientes e astutos, apoiavam Constantino, não sem questionar-lhe, muitas vezes, as ações.


Constantino calou-se, usando o silêncio como tão bem sabia fazer. Voltou a sentar-se e fixou o olhar para fora da janela, distante. Pensava ativamente nas estratégias que usaria para vencer Licínio. 


Esperava pelo apoio de seus homens de confiança, pois sabia do tremendo desafio que vencer o imperador do Oriente representaria. Seria uma batalha das mais difíceis, pois o próprio Licínio era igualmente um general experiente e dominador, possuindo um exército muito maior do que o de Constantino, em número de homens.

Finalmente, Helenus e Domenico aproximaram-se de Constantino e, reverenciando-o, afirmaram:
- Também estamos com você em sua decisão. Licínio precisa ser detido.


- Ótimo. Logo mais nos reuniremos para traçar um plano de ataque detalhado. Já tenho algumas idéias e poderemos definir nossa estratégia.


Helenus e Domenico se retiraram, enquanto Marco permaneceu ao lado de seu imperador, a quem tanto admirava. Daria a própria vida por ele, tamanha sua admiração. Constantino, confortavelmente instalado em seu trono, pensava em suas estratégias, e, apesar de estar convicto de sua decisão, sentia um desconforto ao imaginar-se confrontando Licínio. Era a sua consciência que buscava espaço para alertá-lo do perigo de suas intenções.


Ao perceber-lhe o titubear sutil, duas entidades espirituais, trajando pesado manto negro, aproximaram-se dele e sussurraram-lhe aos ouvidos da mente: "Licínio precisa ser detido. 


Não há nada de errado nisso. Você, e somente você, deve ser o único e absoluto César de Roma. Será muito melhor para o império. Um reino dividido não pode subsistir. Roma precisa de você.

Você, Constantino I, será um imperador que marcará a história de sua época e jamais será esquecido. Um reino dividido não pode subsistir... 

Um reino dividido não pode subsistir...".

Registrando as palavras do espírito ao seu lado, Constantino tomou-as como seus próprios pensamentos e sentiu-se aliviado. Sem dúvida, estava fazendo o correto.


Distante dali, Juliano acabara de pousar sobre a mesa uma cumbuca com água fresca que dera à mãe. Olhando pela janela, suspirou profundamente. Com olhar distante, pensava no pai, no tio e em toda a situação do império. Ele desprezava a atitude de Licínio, sua ganância e seu desejo de poder o enojavam - especialmente porque detectava na corte, e naqueles que circundavam seu pai e acompanhavam seus passos de perto, os interesses acima de tudo.


Percebia o ambiente hostil em que passara toda a sua vida, com medo de todos, sempre protegido pela mãe. Aquilo não era a vida que ele imaginava.

Não apreciava aquela disputa pelo poder a qualquer preço. Quando acompanhava o pai em alguma viagem perigosa, a mãe sempre o cercava de uma guarda pessoal reforçada, temendo pela sua vida. Ela temia até que o próprio pai lhe fi-zesse mal, e ele também. Definitivamente não confiava no pai. Também não confiava no tio. 

A única pessoa em quem de fato confiava era sua mãe. E naquele momento ela estava naquele estado, praticamente entre a vida e a morte.
Estava distraído quando escutou:


- Meu filho...


Sem acreditar, correu até a mãe. Ajoelhando-se, beijou-lhe a face e em lágrimas balbuciou:


- Mãe... graças aos céus...


- Onde está seu pai?


- Eu não sei. Ele viajou, acho. Fique calada, mãe, você não pode fazer nenhum esforço. Foi ferida gravemente e precisa ficar tranqüila para se curar.


- Seu tio...


- Constantino?


- Sim... Precisamos falar com ele...


- Por quê?


- Sei que algo ruim vai acontecer...


- Não, mãe, você precisa se acalmar. Tudo ficará bem, mas precisa ficar calma. Como se sente?


- Estou com fome. Juliano exclamou sorrindo:


- Isso é um ótimo sinal! Você está melhorando! 


Que maravilha, mal posso crer...

- Pensou que iria livrar-se de mim tão fácil?...


- Não diga isso, mãe. Não sabe o quanto sofri esse tempo todo.


- Faz tempo que estou aqui, nesta cama?


- Umas duas semanas.


Fazendo menção de erguer-se, foi impedida pelo rapaz:


- Não, mãe, o que está fazendo? Não pode levantar-se ainda. Deixe que Otávio a examine primeiro. Você ficou muito mal...


Constância, impedida pelo filho, voltou a deitar-se enquanto falou:


- Sinto-me bem. Apenas um pouco tonta e fraca, mas estou bem. Não tenho nenhuma dor.


- Mas seu corte foi fundo e você perdeu muito sangue. Agora vai precisar de uma dieta especial por algum tempo para poder recuperar-se por completo. Portanto, fique aí quietinha. Logo Helena virá e então pedirei que chame Otávio. 


Somente ele poderá autorizá-la a se levantar. 

- Estou aflita por seu pai. Onde ele está?

- Já disse que viajou, mãe.


- Para onde? Quando volta?


- Ele saiu daqui enfurecido. Sabe que tio Constantino o irrita profundamente.
- Eu sei.


- E receio, mãe, que não haja mais nada que possamos fazer.


- Eles se enfrentarão em breve.


- O que me diz? Ele lhe falou que iria atacar Constantino?


- Não. Constantino marchará contra seu pai.
- Como sabe?


- Eu simplesmente sei e temo por ele.


- Como pode ainda querer-lhe bem, depois de tudo? E não somente o que lhe fez agora, mas a forma como a tratou a vida inteira?


- Fui e sou fiel aos meus deveres. E você também deve ser. O caráter de um homem se mede pelo respeito que ele tem por si mesmo e pelos seus semelhantes.


- Acontece que meu pai não tem respeito por ninguém.


- E como aprenderá, se o tratarmos de igual modo?


Juliano sorriu afetuoso e comentou, depois de longo período de silêncio:


- Simplesmente não sei como consegue, mãe. Constância insistiu:


- Sabe onde ele está?


- Não, mãe, ele não me disse nada e realmente não me interessei em saber. Em breve estará de volta.


Apreensiva, ela balbuciou:


- Não tenho tanta certeza...


Helena entrou e ao deparar com os dois conversando, correu ao encontro deles, chorando:


- Minha senhora, graças a Deus acordou! Está melhorando...


A madura senhora respondeu:


- Seria melhor estar no mundo espiritual agora, mas ainda tenho tarefas a cumprir por aqui.


Limpando as lágrimas Helena disse, segurando as mãos de sua senhora:


- Fico feliz, a senhora nos faria muita falta.
Capítulo 4 - Duas Testemunhas

Duas testemunhas espirituais assistiam àquela cena repleta de alegria, suavidade e amor. Com vestes diáfanas e luminescentes, Angélica acompanhava o despertar de Constância, de quem havia cuidado carinhosamente. Sorrindo, ao constatar finalmente a recuperação de sua protegida, comentou com Maurício:

- Pode voltar agora à colônia. Ela ficará bem.


O belo rapaz, que mais lembrava a figura de um anjo, tão insistentemente retratado por artistas de todos os tempos, fitou Angélica com ternura e perguntou:


- Tem certeza?


- Sim, ela conseguiu responder muito bem ao nosso tratamento. Seu corpo está em recuperação e o quadro é promissor.


Fazendo pequena pausa, ela prosseguiu, com suave entonação na voz:


- Você ajudou muito, agradeço mais uma vez.


- Não me agradeça. Devemos tudo a Jesus.


- Sim, eu sei. Agora é importante que você retorne à colônia, levando a Ernesto as boas notícias. Pelo empenho com que tem acompanhado o processo de expansão do Evangelho de Jesus sobre a Terra e pelo seu envolvimento em todos os detalhes, ele gostará de saber que conseguimos impedir a partida de Constância antes do previsto.


- Vou agora mesmo. Você me parece cansada. Vai demorar-se muito ainda aqui?


- Ficarei até que a situação se acalme.


- Mas parece agravar-se cada vez mais.


- Você sabe o porquê.


Ambos emudeceram por longo tempo. Maurício, por fim, comentou:


- É... Não podemos desanimar.


- De modo algum; vamos perseverar. O Cristianismo haverá de triunfar sobre a Terra. Por mais que haja resistência de todos os lados, a verdade que Jesus veio trazer à humanidade prevalecerá!


- Por quanto tempo ainda negaremos e deturparemos seus ensinamentos? 


Por que o homem não compreende o que o Mestre veio ensinar?

- Porque somos ainda crianças, espiritualmente falando. Temos muito a aprender, e enxergamos tudo com nossa limitada compreensão da realidade.


- E por que alguns conseguem e outros não? 


- É por causa da humildade e da fé. Alguns já conseguem ser humildes o suficiente para intuir que são limitados demais, e não podem confiar nas próprias interpretações; precisam buscar a verdade. E mais do que isso: estão dispostos a fazer o esforço necessário para trilhar o caminho da iluminação espiritual, da regeneração de si mesmos. Estão dispostos a abrir mão dos prazeres e ilusões passageiros, para dedicar seus esforços àquilo que é essencial e perene.

- Por quanto tempo ainda os cristãos sofrerão tamanha perseguição? Não deveria ser assim, não é mesmo?


- Quem somos nós para tirar esse tipo de conclusão? No entanto, meu mais profundo desejo é que os homens despertem do sono da ignorância em que ainda estão imersos. Mas agora é melhor que você vá. Leve notícias e peça novas orientações. 


Preciso saber em que poderei ajudar, no caso de as suspeitas de Constância estarem certas. As circunstâncias se precipitam cada vez mais e estou receosa pelas decisões que Constantino tem tomado; ele vem colaborando com os nossos objetivos, como se propôs, mas sinto que pouco a pouco distancia-se, na essência, daquilo que deveria fazer.

- Mas ainda age em nosso favor.


- Aparentemente. Entretanto, sinto que suas motivações estão se desvirtuando.


- Se estiver certa, ele poderá perder-se a qualquer momento.


- Esse é o meu receio. Preciso da ajuda de nossos orientadores do Mais Alto.


Sem demora, ambos se despediram e Mauricio partiu em direção a uma colônia espiritual situada sobre a região da Europa central. Não teve dificuldade de ultrapassar a grande diferença de vibrações entre os planos material e espiritual, e logo cruzava enorme portão que se abria para uma região espiritual de serena suavidade e intensa atividade do bem. A atmosfera se fez mais leve, doce fragrância de flores as mais diversas invadia o ar; pássaros e borboletas coloridas cruzavam o céu. Maurício deteve-se diante da beleza da colônia e respirou fundo, haurindo com satisfação as energias sutis que vibravam no ambiente. 


Entrou. Logo estava em companhia de Ernesto, que o aguardava:

- Maurício, é bom vê-lo. Que notícias nos traz dos irmãos encarnados?


Acomodando-se ao lado do orientador, Maurício suspirou:


- A situação continua difícil.


- Tenho percebido grande adensamento energético sobre o planeta.


- Sim, como se nuvens negras e pesadas se acumulassem sobre a Crosta. Apesar disso, trago-lhe boas notícias. Conseguimos contribuir efetivamente para a melhora de Constância. Ela acaba de despertar e se recupera muito bem.


- Excelente trabalho, Maurício. Ela é nossa grande aliada no sentido de manter Constantino nos trilhos de sua programação. Ela é fundamental. O rapaz prosseguiu, interessado:


- Angélica continua dedicada à sua recuperação.


- Ela tem conseguido maior influência sobre Constantino?


- Tem trabalhado muito, mas também está receosa de que ele se desvie de sua tarefa.


- Honestamente, Maurício, eu também estou, e muito.


O jovem fitou Ernesto sem dizer palavra. Também estava apreensivo. Depois de breve pausa, indagou:


- Achei que talvez Angélica exagerasse... Então ele realmente está se desviando da tarefa?


- Pouco a pouco, quase imperceptivelmente, vem se distanciando de nossa programação.


- E o que podemos fazer?


- Faremos tudo o que estiver ao nosso alcance, mas a decisão é dele.


Sério, Maurício indagou:


- Conhece-o há muito tempo?


- Sim, desde Capela. Surpreso, Maurício comentou:


- É... faz tempo mesmo. Também vieram de lá?


- E chegamos antes de você, um pouco antes.


- A grande maioria já retornou....


- Contudo, há ainda muitos por aqui. Estamos tentando, não é mesmo?


- Sinto saudade de meu verdadeiro lar. Desejo retornar assim que for possível; mas como fazer isso, deixando para trás tantas pessoas queridas? 


Não posso, por enquanto.

- Sei bem o que sente. É o caso de Ferdinando, ora vivendo na Terra como Constantino.


- Ele já tem preparo suficiente para realizar a tarefa que se propôs.


- Certamente. Entretanto, não importa quão preparados estejamos, sempre poderemos falhar; basta uma distração, um enveredar pelo caminho do orgulho e nos deixar dominar por ele, e pronto. O retorno fica muito difícil.


Calaram-se novamente. Ernesto ergueu-se, caminhou até uma grande janela que dava para florido jardim e comentou, por fim:


- Continuemos orando e confiando. Deus jamais permite que se coloque sobre qualquer de seus filhos peso maior do que está preparado para suportar. Confiemos que Constantino será capaz de reencontrar-se e ser vitorioso, afinal.
Capítulo 5 - Era Madrugada 

Era madrugada quando o mensageiro de Constantino alcançou os portões de Bizâncio. Constância, que se recuperara quase completamente do triste incidente com o marido, deu um pulo na cama e sentou-se, tremendo, assustada. Ofegante, tirou o pequeno crucifixo que trazia junto ao peito e suplicou:

- Mestre Jesus, socorra-me e à minha família. Meu coração está opresso e me diz que algo sombrio está por acontecer. Ajude-nos, por favor...


Sem compreender por que a dor no peito a oprimia tanto, não pôde conter as lágrimas que lhe desciam pela face alva. Pedindo repetidamente o socorro de Jesus e de seus enviados, ela finalmente conseguiu acalmar-se e voltou a se deitar. 


Entretanto, por mais que tentasse, não conseguia conciliar o sono e revirou-se na cama até o sol brilhar intenso no céu do Mediterrâneo.

Assim que adentrou os portões da fortificada cidade, o mensageiro do Augusto do Ocidente deu de comer ao seu cavalo e descansou brevemente. 


Tinha ordens de seu general para retornar com a resposta de Licínio tão logo a obtivesse. Quando o dia amanheceu, dois soldados da guarda pessoal do imperador vieram buscá-lo:

- O imperador Licínio irá recebê-lo agora. Acompanhe-nos.


Prontamente o mensageiro os seguiu até o imperador. Ajoelhado diante do grande general que dividia o poder do império romano com Constantino, o jovem permaneceu calado, aguardando as instruções do soberano, que depois de longo silêncio indagou:


- O que quer Constantino?


- Os sármatas ameaçam nossa fronteira, senhor, e Constantino pede autorização para cruzar seu território, a fim de surpreender o inimigo, antes que este avance sobre Roma.


- O quê? Que estratégia ridícula é essa de seu imperador? O que ele pretende? Vamos, responda!


Sem erguer os olhos, o rapaz apenas disse:


- Eu não sei, senhor. A única orientação que recebi foi para pedir-lhe a autorização e retornar imediatamente com sua resposta.


Licínio sorriu, cínico, e insistiu:


- Não sabe? Tem certeza? Vociferou então, com o rapaz:


- Vamos, diga o que Constantino planeja! Você não é um soldado? Deve saber, então.


Trêmulo, o rapaz redarguiu:


- Eu não sei, senhor, apenas cumpro ordens. 


- E por que Constantino planeja atacar os sármatas por minhas terras? É certamente o caminho mais longo. Decerto ele planeja algo contra mim.

Licínio levantou-se e caminhou até a janela da ampla sala. Ficou longo tempo em silêncio, olhando pela janela. Depois, aproximou-se do rapaz e, encostando a cabeça na dele, segurou-lhe a face com uma das mãos e gritou com violência:


- Sei muito bem o que ele planeja. Vou esperá-lo muito bem preparado. E quanto a você, meu rapaz, se quiser fixar residência aqui, a partir de agora, será poupado de longa e dolorosa viagem.


O jovem soldado fitou o general, que naquele momento lhe parecia ainda mais alto e mais forte, antes de responder com estranheza:


- Não posso, senhor... Meu general me aguarda. 


Com ar prepotente e arrogante, Licínio ordenou:

- Pois bem, que assim seja. Quero dar uma resposta contundente ao seu senhor.


E chamando um de seus homens, ordenou:


- Levem-no ao poste. Cem chibatadas, depois deixem-no partir.


O rapaz fitou o imperador com os olhos arregalados, mal acreditando no que escutava. 


Sabia que Licínio era um general duro e muito experiente, mas jamais esperaria tal atitude de um outro soldado. Sem dizer palavra, foi arrastado pelos guardas e chicoteado impiedosamente. 

Depois, colocaram-no sobre o cavalo e mandaram-no partir. Embora muito machucado, ele conseguiu conduzir seu cavalo até a divisa dos domínios do Oriente com os do Ocidente. Foi socorrido pelos colegas e logo acomodado em um leito, para receber tratamento. Antes de ficar inconsciente, disse com enorme esforço:
- Ele não permitirá...


O general, que pessoalmente o auxiliava, acalmou o rapaz:


- Nós já sabemos. Agora, descanse.


Logo o soldado ficou inconsciente. E depois de duas noites naquele estado, não resistiu aos ferimentos que, associados à longa jornada, ceifaram-lhe a jovem vida. Alguns dias depois, Constantino chegou ao acampamento, com seu exército já arregimentado e ordenando que todos os seus melhores homens, espalhados pelo império, se juntassem a ele para a batalha iminente. Policarpo, o general responsável pelo acampamento próximo à divisa, detalhou o estado em que o jovem chegara. Cheio de ódio, Constantino fê-lo repetir a narrativa a todo o acampamento e, ao final, mostrando-se indignado, proferiu suas ordens da maneira mais eloqüente:


- E por essas decisões arbitrárias que temos de tomar o reino do Oriente das mãos de Licínio. 


Invadiremos Bizâncio e subjugaremos o imperador do Oriente e seus homens mais fiéis. Chega de agressões descabidas. Primeiro os cristãos, depois minha própria irmã quase morreu nas mãos desse monstro, e agora esse jovem inocente, que simplesmente cumpria ordens, deixando sua família, por estupidez absoluta.

Fez longa e calculada pausa, e depois concluiu:


- Não toleraremos mais isso! Sigam-me e seremos vitoriosos! Vou liderá-los pessoalmente nesta batalha e, ouçam bem o que digo, nós venceremos!


Envolvidos pela emoção que as palavras inflamadas de Constantino lhes causavam, eles gritaram, liderados pelos homens de confiança do imperador:


- Ave César, único imperador de Roma!


Constantino fitou os seus homens a ovacioná-lo e emocionou-se. Eram mais de 100 mil homens a gritar diante dele. Sentia com todas as forças que venceria Licínio e se tornaria o único imperador. 


Era esse, agora, seu propósito. Toda a sua força estava voltada para esse fim. Retirou-se com seus generais, para organizar o ataque que fariam em breve à capital do Oriente.

Durante vários dias o exército de Constantino avançou mais e mais, rumo a Bizâncio, cidade que pretendiam dominar e ocupar. De fato, Constantino desejava fazer dela a sede de seu império. Famosa pela posição estratégica que ocupava, desde muito havia despertado o interesse do grande general. Quanto mais avançavam, mais crescia o número de soldados. Acampavam à noite, e mal o dia amanhecia todos se punham a caminho. Superaram o frio e regiões de difícil acesso, mas foi às margens do rio Ebro, pouco distante de Bizâncio, que foram obrigados a parar, dada a violenta correnteza que dificultava a tra-vessia dos 120 mil soldados, entre homens de infantaria e cavalaria.


Constantino determinou que acampassem:


- E inútil avançarmos agora. Precisamos entender bem a situação de nosso oponente. Passaremos esta noite aqui.


Marco observou, preocupado:


- Acho bom mesmo descansarmos. Os homens estão exaustos .


- Pois ficaremos aqui por ora. Marco, quero que envie uma pequena tropa de seus melhores homens - pequena mesmo, dois ou três - para que verifiquem a situação logo após o rio. Precisamos saber exatamente a situação de Licínio.


Atendendo de pronto à ordem de seu imperador, Marco retornou algum tempo depois, informando:


- Estão a caminho. Enviei três de meus melhores soldados.


- Ótimo. Aguardaremos o retorno deles. Quero que montem vários turnos de descanso, e que metade dos homens esteja sempre desperta e em alerta. Licínio pode atacar a qualquer momento.


Marco indagou, surpreso: 


- Acredita mesmo que ele planeja atacá-lo, senhor?

- Acredito que um homem desesperado seja capaz de qualquer ação.


Ao final da tarde seguinte, os três experientes soldados retornaram trazendo informações precisas e preciosas, que foram logo levadas a Constantino.


- As tropas de Licínio ocupam as planícies de Adrianópolis. Estão espalhadas por terrenos elevados, o que definitivamente lhes garante vantagem, pelas condições do terreno.


- Quantos homens?


- E grande demais o seu exército. Meus homens ficaram muito impressionados. Relataram que o campo está como coberto por formigas. São muitos homens. Garantem que excede em número nosso exército.


Constantino ficou longo tempo pensando e depois ordenou:


- Iniciaremos a construção de uma ponte ainda de madrugada. Quero muitos envolvidos nessa construção. Metade dos homens deve se dedicar à empreitada.


Os generais de Constantino o ouviam atentos. Jamais questionavam suas ordens ou suas estratégias, que muitas vezes não compreendiam, mas sabiam que elas já haviam concedido àquele exército mais de dezessete vitórias; portanto, confiavam em seu general. E o seguiriam lealmente até a morte.


Vários dias se passaram, e a ponte se erguia pouco a pouco sobre o rio.


Naquela noite, ao despedir-se de seus homens, Constantino sabia que a hora de atacar havia chegado. Sabia que o oponente acompanhava suas manobras, e chegara a hora de surpreendê-lo. No meio da madrugada, mandou chamar seus três principais generais e ordenou:


- Quero um regimento com cinco mil arqueiros. 


Vamos atravessar o rio e nos embrenhar pela floresta densa; surpreenderemos os homens de Licínio pela retaguarda. Eles não nos esperam. 

Meu objetivo é atacar o acampamento de Licínio.

Os generais se entreolharam, surpresos pela ordem inesperada; no entanto, não ousaram sequer fazer qualquer comentário. Obedeceram de pronto. Sabiam que o elemento surpresa seria fundamental na ousada estratégia de Constantino.


Antes de saírem, Marco virou-se para Constantino e perguntou:

- Permita-me saber se poderei estar entre os líderes desse ataque.


- Você e os demais, meus homens de confiança. E eu, pessoalmente, vou liderar o ataque.


Fazendo posição de sentido e olhando com profunda admiração para aque-le jovem general que estava diante dele, Marco se retirou. Ao sair da tenda de Constantino, cruzou com Crispus, filho mais velho do imperador, que entrou ansioso, indagando: - Vai sair à batalha, meu pai?


- Assim que os homens estiverem prontos.


- Quero acompanhá-lo.


- Seja paciente, Crispus, tenho planos para você.
- Que planos, senhor?


- Dada a sua habilidade náutica, quero poupá-lo para o possível confronto que teremos com a armada de Licínio, que ocupa o estreito de Helesponto. Temos de derrotá-los no mar para poder aniquilá-los de fato. Não podemos correr o risco de desembarcarem e nos atacarem no momento em que estivermos para invadir Bizâncio. O que sabe sobre a armada?


- Sei que é poderosa, com mais de 350 navios grandes e bem equipados ocupando todo o Helesponto.


Fitando o rapaz como a desafiá-lo, o mais velho inquiriu:


- E o que você pensa sobre isso? O que acha? 

Pode vencê-los? Crispus pensou um pouco, depois continuou:

- Nossa frota é bem menor, é verdade, mas nossos homens são leais e corajosos. Aguardam suas ordens, prontos a obedecer.


Tocando com a mão direita o ombro do filho, Constantino autorizou:


- Muito bem, meu filho, aguarde minhas ordens. Permaneça no acampamento. Sua luta será no mar.


Diligente, o rapaz assentiu com a cabeça e respondeu:


- Atenderei prontamente às suas ordens.


- Voltarei em breve com a vitória para prosseguirmos rumo à conquista definitiva de Bizâncio e à derrota final de Licínio. Quero que destrua completamente sua força náutica; transforme-os em fumaça...


Crispus tão-somente respondeu:


- Pois assim será!


Logo em seguida Marco entrou e comunicou:
- Estamos prontos, senhor.


Constantino vestiu a armadura, empunhou a pesada espada que o acompanhara em tantas outras batalhas e, fitando-a como a conversar com ela, conclamou em alta voz:


- À vitória!
Capítulo 6 - Enquanto Caminha

Enquanto caminhava pela colônia, em um dos grandes jardins floridos, Angélica cumprimentava os amigos e colegas com quem compartilhara trabalho e aprendizado. Ela também viera de Capela e alcançara, através de esforço e dedicação em diversas encarnações penosas, significativo progresso. Estava pronta para retornar à constelação do Cocheiro, mas embora sua alma suspirasse por voltar ao lar, seu coração se enchera de compaixão pelos habitantes da Terra e seu difícil caminho de evolução. Queria ajudar e, como Ernesto, resolvera permanecer para isso.

Finalmente chegou a uma grande construção, onde Ernesto a aguardava. Assim que a viu, encheu-se de alegria. E abraçando-a exultou:


- É bom vê-la outra vez, Angélica.


Retribuindo-lhe o carinho, ela o abraçou ternamente e disse:


- Também estava com saudade, mas achei melhor permanecer junto a Constância.


Deixando visível sua preocupação, Ernesto comentou:


- A situação está piorando muito, não é?


- Muito. Constância já não consegue acesso ao irmão. Constantino distanciou-se emocionalmente de toda a família. Inclusive dos próprios filhos. 


Tem se enclausurado em si mesmo cada vez mais, e perigosamente acredita naquilo que falam sobre ele.

Entristecido, Ernesto lamentou:


- O poder o está cegando totalmente.


- Eu temo que sim.


- O poder que ele deveria utilizar para fortalecer o bem e a verdade, para fazer expandir-se sobre a Terra a luz do Evangelho, está usando para satisfazer as próprias paixões.


- E isso mesmo. Infelizmente, creio que ele não conseguirá! Ernesto calou-se e meditou por longo tempo. Depois, perguntou:


- E como está Constância?


- Apesar de fisicamente recuperada, sua alma sofre muito, pois sabe que ambos, Licínio e Constantino, se desviaram de suas tarefas, e estão prestes a se confrontar.


- E eram dois imperadores justamente para se ajudarem mutuamente em tarefa de tamanha responsabilidade.


- Não resistiram aos apelos da personalidade, do ego. Ao egocentrismo e ao endeusamento de si mesmos. Suspirando fundo, Angélica emendou:


- Nossa irmã sofre profundamente, pois intui a dor e o sofrimento que os aguarda após deixarem a Terra.


A jovem fez uma pausa, depois continuou:


- O que poderemos fazer, Ernesto? Uma programação reencarnatória tão preparada, longamente planejada, agora prestes a se perder...


- E... O livre-arbítrio. Não podemos impedir que Constantino faça suas escolhas. Ele tem esse direito. E aqueles que o seguem também. O que podemos fazer, agora, é rogar ao Pai Celeste nos socorra e nos oriente.


- Eles estão prestes a se enfrentar. Talvez o façam agora, enquanto nos falamos. Constantino alcançou as planícies de Adrianópolis com mais de 120 mil homens; Licínio está acampado com seus homens nas planícies, já mais para o lado de Bizâncio. A guerra é inevitável e...


Angélica não pôde continuar. A dor tomou conta de seu coração e pesadas lágrimas desciam pela sua face. Ernesto buscou consolá-la e disse, tocando suas mãos:


- Sei que é difícil...


- Quantas vidas perdidas... Quanto sofrimento inútil... Quanta dor se projetando para o futuro dessas almas...


- Sim, minha irmã, infelizmente. Limpando as lágrimas, ela indagou:


- Por quê? Por que ainda é tão difícil para os homens compreender...


- Porque a verdade incomoda os homens, Angélica.


- Por quê?


Ernesto pensou por alguns momentos, depois, envolto em safírica luz, disse:


- Os homens tentam de todas as maneiras fugir de sua difícil, angustiosa situação espiritual.


- Por que não procuram sair da situação, para serem mais felizes? A verdade nos liberta, nos faz donos de nossos destinos, nos aproxima de Deus e nos torna seres mais felizes.


- Não sem antes nos obrigar e enxergar nossa real condição espiritual. Jesus trouxe para os homens a consciência de nossa real condição espiritual, ar-rancando-nos das ilusões em que nos apoiávamos, acreditando-nos possuidores de uma superioridade que não existe.


Fez curta pausa. Angélica o escutava atenta. Ele continuou:


- Conscientes de nossa real situação, temos de tomar uma decisão, e arcar com as conseqüências advindas dela. Podemos optar pela iluminação espiritual, conscientes de que ela é árdua, difícil e demorada, mas o único caminho para nossa real felicidade. Ou então, abafar a consciência e escolher a fantasia, a mentira, pois ela nos dá maior prazer, maior satisfação e não nos obriga a empreender os esforços de resignação, humildade e desapego às ilusões, principalmente sobre nós mesmos.


Angélica balançou a cabeça em sinal afirmativo e disse:


- Tem razão, meu sábio amigo. A verdade nos liberta, mas depende de nosso esforço e coragem para nos vermos como realmente somos.


- Exatamente. Por isso matamos Jesus impiedosamente. Calando o Messias, tentamos fazer silenciar a própria consciência que gritava dentro de nós.


Angélica ia fazer uma pergunta, quando Ernesto sugeriu:


- Oremos a Deus. Ele haverá de nos orientar. E acima de tudo, tenhamos paciência, sabendo que nós mesmos viemos de longa data fugindo destas verdades...


Angélica sorriu ao repetir:


- Paciência...


E Ernesto finalizou:


- E muita perseverança. O bem triunfará, isso é inevitável. A verdade será vitoriosa.

Introdução - O Mar Estava Agitado O mar estava agitado. A pequena embarcação se afastava com dificuldade, buscando alcançar o navio que ...